COMO GARANTIR A PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA SEXUAL?

Autor: 
Denise de Carvalho Campos

Em princípio, é preciso reconhecer a violência sexual como uma violação de direitos humanos, que fere a dignidade e a liberdade da pessoa humana. Quando atinge crianças e adolescentes, torna-se ainda mais grave, porque cria obstáculos ao desenvolvimento saudável da sexualidade e interfere no processo de amadurecimento, impedindo o exercício dos direitos sexuais de maneira livre e protegida.

A violência sexual contra crianças e adolescentes pode ser expressa de diversas formas, como o abuso sexual intrafamiliar ou interpessoal e a exploração sexual comercial e não comercial, que se concretiza através da prostituição, da pornografia, do turismo sexual e do tráfico de pessoas para fins sexuais.

Essa violência ocorre em um contexto de imposição de poder, do adulto sobre a criança ou o adolescente, refletindo as desigualdades socioeconômicas, raciais, étnicas e de gênero que marcam nossa sociedade. É uma violência multifacetada, cujos fatores de risco e vulnerabilidades se dão por uma lógica de masculinidade dominante, que é histórica e socialmente construída.

A luta contra a violência sexual de crianças e adolescentes no Brasil foi assumida com uma mobilização nacional e articulação que envolvem a sociedade civil, instituições públicas e privadas, comunidades, crianças e adolescentes em torno dos direitos infantojuvenis. Essa violência passou a ser considerada questão social e de saúde, exigindo políticas públicas e diversas estratégias de enfrentamento.

Note-se que o Brasil foi o primeiro país a promulgar um marco legal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 1990), em sintonia com o paradigma dos direitos humanos reconhecidos na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989. A partir daí, crianças e adolescentes passaram a ser considerados, explicitamente, como “sujeitos de direitos” e credores de proteção integral, devido à característica de “pessoa em condição peculiar de desenvolvimento” (art. 6º, ECA).

Nesse sentido, sustenta Wanderlino Nogueira, “não se cuida deles ou os protege apenas atendendo e satisfazendo suas necessidades, desejos, interesses e, sim, defendendo (protegendo) seus direitos, ou seja, ressarcindo e restaurando tais direitos quando ameaçados e violados; isto é, garantindo seus direitos”. Por isso, reconhecer, defender e promover os direitos sexuais de crianças e adolescentes é condição essencial para a realização de sua dignidade e a proteção de seu direito à vida.

Esse entendimento foi reforçado pela promulgação da Convenção sobre os Direitos da Criança em nosso ordenamento jurídico, por meio do Decreto nº 99.710, de 1990, cujo Artigo 6, item 2, estabelece que os Estados Partes devem assegurar ao máximo a “sobrevivência e o desenvolvimento da criança”, além de adotar medidas apropriadas para “protegê-las contra todas as formas de abuso e exploração sexual”, nos termos do Artigo 34.

Além dessa Convenção, temos outros documentos que compõem a normativa internacional como a Agenda de Estocolmo, de 1996, e o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança referente à venda de crianças, à prostituição infantil e à pornografia, de 2000 (Decreto nº 5.007/04), também construídos sobre a mesma lógica da proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes.

Em 2000, o Brasil, em consonância com essas diretrizes internacionais, elaborou um Plano Nacional com diretrizes para o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, que hoje se afigura documento referencial para a estruturação de políticas públicas de enfrentamento em todo o País.

Nesse mesmo ano, destaca-se outra iniciativa relevante na luta pelos direitos infantojuvenis, com a instituição da data de 18 de maio como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, por meio da Lei federal nº 9.970/00.

Apesar destes marcos legais nacionais e internacionais e da mobilização da sociedade civil e de representações públicas para garantir os direitos sexuais de crianças e adolescentes, constata-se que estes ainda são pouco reconhecidos em nossa sociedade e, muitas vezes, tratados em caráter de excepcionalidade ou como um problema, sob olhar moralista e adultocêntrico.

Essa cultura conservadora e moralista ainda está muito presente no ambiente institucional ao qual crianças e adolescentes vítimas de violência sexual estão submetidas. É preciso, portanto, revisar condutas e dar efetividade à nova ordem constitucional.

Urge trazer à reflexão o atendimento dispensado a crianças e adolescentes vitimizados sexualmente dentro do sistema de Justiça (delegacias, Instituto Médico Legal, defensorias, promotorias e varas criminais).

Sabe-se que, no momento em que uma denúncia chega ao conhecimento da autoridade policial, um fluxo é disparado. Geralmente a criança ou o adolescente passa a ser submetido a oitivas, exames periciais, entrevistas e avaliações psicossociais, com o objetivo de fazer a prova da materialidade do caso para responsabilização criminal do autor.

Acontece que esse rito processual comum no processo penal não está adaptado à idade da vítima. Na maioria dos Estados brasileiros, as oitivas ocorrem em ambientes não adequados para acolher crianças e adolescentes, e os procedimentos adotados não diferem daqueles usados para vítimas adultas.

Observa-se a falta de especialização dos profissionais que atuam na área, os quais procedem abordagens inadequadas, preconceituosas, moralistas e autoritárias, colocando crianças e adolescentes vítimas em situações humilhantes, vexatórias e desrespeitosas, o que fere frontalmente o paradigma dos direitos humanos.

Mas estas não são as únicas questões que merecem debate quando se trata da violação de direitos de crianças e adolescentes. Conforme observa o documento produzido pelo Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, que analisou casos emblemáticos investigados por Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, em 2004, o sistema de Justiça, quando age para responsabilizar, acaba por maltratar a vítima, porque transforma crianças e adolescentes em fonte de informação para a punição.

Nesse contexto, é preciso pensar um sistema de Justiça melhor aparelhado tecnicamente, que leve em conta o melhor interesse da criança e respeite sua condição peculiar de desenvolvimento. Necessário se faz construir um sistema especial de proteção para lidar com pessoas em condições de desigualdade, que ainda não desenvolveram completamente sua personalidade e estão em processo de formação nos aspectos físico, psíquico e social.

Assim, a intervenção pública nos casos de violência sexual infantojuvenil deve ser dirigida às necessidades da criança e do adolescente que se encontra em momento de extrema vulnerabilidade e fragilidade emocional. Porém, o que se vê no ambiente policial e judicial é o foco exclusivamente no agressor, onde a razão do processo criminal passa a ser simplesmente a punição.

O que se defende aqui é que os mecanismos de responsabilização e proteção sejam acionados de forma concomitante. Caso contrário, a criança ou o adolescente vitimizados dificilmente terão condições de restaurar sua dignidade.

O sistema de Justiça deve garantir procedimentos diferenciados para o atendimento de crianças e adolescentes, criar delegacias e varas especializadas, com equipes multiprofissionais capacitadas para atender esses casos.

As experiências desenvolvidas pelo movimento social mostram que é preciso caminhar no sentido de garantir a protecão da criança e do adolescente, o que implica exigir atendimento de qualidade, assegurar o devido respeito à sua opinião, efetivar a sua oitiva de forma especial, efetivar o direito a uma sexualidade saudável e protegida e o acesso à Justiça quando seus direitos forem violados.

O desafio é mudar o olhar sobre a infância e a adolescência e assumir um compromisso com a promoção e a proteção dos direitos sexuais de crianças e adolescentes na perspectiva dos direitos humanos. Só assim será possível garantir uma vida mais digna a estes vulneráveis.

DENISE DE CARVALHO CAMPOS é Assistente Social do 2º Juizado da Infância e Juventude de Porto Velho – TJ-RO. Representante da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED) no Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.

REFERÊNCIAS

A defesa de crianças e adolescentes vítimas de violências sexuais(2009).ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS CENTROS DE DEFESA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE,São Paulo.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Falando sério sobre a escuta de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência e a rede de proteção. Propostas do Conselho Federal de Psicologia. Brasília, 2009.

NETO,Wanderlino Nogueira(2011)Promoção e Proteção dos Direitos Sexuais de Crianças e Adolescentes,na perspectiva dos Direitos Humanos. Direitos Sexuais são Direitos Humanos-Caderno Temático.COMITÊ NACIONAL DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES, 2. ed. Brasília.

ROSENO, Renato; CARVALHO, Fernando Luz; PAIVA, Leila. Proteger e Responsabilizar. O desafio da sociedade e do Estado quando a vítima da violência sexual é criança ou adolescente. 2007.

Box: Apesar dos marcos legais nacionais e internacionais e da mobilização da sociedade civil e de representações públicas para garantir os direitos sexuais de crianças e adolescentes, estes ainda são pouco reconhecidos e, muitas vezes, tratados em caráter de excepcionalidade ou como um problema, sob olhar moralista e adultocêntrico.

 


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