Mais uma vez ... o adolescente autor de ato infracional
Fórum "Adolescente em Conflito com a Lei" (Santos - 30.08.03)
O que nos move a discutir mais uma vez o tema “o adolescente autor de ato infracional” é a lógica do desafio ( em oposição à lógica do fracasso), tentar de novo, mais uma vez... e, com esperança e competência redobradas. Não precisamos repetir os erros !
Considero que os presentes, neste fórum, sabem bastante sobre o tema: pelo estudo, pela prática, pelas nossas funções e responsabilidades - como pessoas, cidadãos e profissionais da área da infância e juventude.
Sabemos muito mas cada um “na sua” ( sua especialidade, sua prática, seu saber-poder, suas vaidades) . Este saber compartimentado, fragmentado não nos leva a compreender de fato ( para além da aparência) o adolescente, o adolescente autor de ato infracional – que se inscreve em uma sociedade ( o mundo ) cada vez mais complexa em que as fronteiras entre povos, nações e o trânsito se alteram por novos fenômenos transnacionais, pela comunicação planetária; fragmentam antigas matrizes de identidade, produzem novas referências identitárias; o saber fragmentado não nos permite compreender este adolescente inscrito no contexto da cultura, das transformações cada vez mais rápidas das tecnologias, das construções científicas, de novos padrões de conduta e de convivência, do exagero do consumo e de insatisfação permanente, de outras éticas, de produção de novas biografias e desconhecidos modos de ser e existir; o saber de uma única especialidade não promove a compreensão deste tema que tem dupla face: o adolescente como vítima e como autor no cenário da violência.
Um parêntesis: abordar o adolescente autor de ato infracional implica considerá-lo também como vítima de violência, não só por sua história pessoal onde estas vivências são frequentes ( em casa, na rua, no confronto com o grupo, com a instituição, coma a rua ) mas, considerar que o Brasil é o terceiro país do mundo e São Paulo é o primeiro estado do país em homicídio de adolescentes. Nos dois polos da violência - como vítima e como agente – “é um desperdício de vidas”: este é o título do Dossiê da Anistia Internacional (20001) sobre tortura e mortes de adolescentes no Brasil.
Este é um fenômeno multideterminado, multifacetado e seu deciframento implica um conhecimento transdisciplinar. Uma única área de saber não dá conta porque vê uma face, reduz o fenômeno a um fato: fato econômico, fato antropológico, jurídico, psicológico.... é necessário transitar por vários saberes, várias especialidades. O que dá pistas de decifração do fenômeno também não está no multidisciplinar, que é a somatória de faces, a justaposição de explicações. O modo de olhar, compreender implica a transdisciplinariedade – um saber outro sobre a complexidade do ser humano – no caso, o adolescente - que precisamos/estamos construindo.
Abordar este tema pela lógica do desafio implica a explicitação de um pressuposto: não há neutralidade possível frente à violência e, portanto o conhecimento produzido será solidário. Boaventura de Souza Santos, diz: “conhecer é reconhecer, é progredir no sentido de elevar o outro à condição de sujeito. Este conhecimento-reconhecimento é o que designo por solidariedade. Estamos tão habituados a conceber o conhecimento como um princípio de ordem sobre as coisas e sobre os outros que é difícil imaginar uma forma de conhecimento que funcione como princípio de solidariedade”. Ou seja, produzir um conhecimento que se comprometa em realizar aquilo que foi a grande desilusão do século 20, segundo Hobsbawm: que a produção científica, o conhecimento possa de fato ajudar a transformar a vida das pessoas, ajudá-las a viver melhor, com bem –estar ou, se isto ainda não é possível que busquemos, pelo menos, a garantia da dignidade humana; o que em se tratando de adolescentes autores de ato infracional nas atuais circunstâncias históricas de seu atendimento no estado de São Paulo é absolutamente disruptivo, subverte o instituído porque rompe com o cinismo dos responsáveis pela execução dos programas e serviços destinados a eles, particularmente daqueles em privação de liberdade.
Esta tarefa implica esforço coletivo pautado pela ética da solidariedade, como propõe Edgar Morin.
O trato dos temas produzidos e produtores do mal estar na atualidade nos implica na ética da solidariedade cujo maior valor, segundo Morin, é o vinculo que nos liga às pessoas mais íntimas e mais anônimas. Dito de outro modo, o compromissso com o adolescente que está ali a nossa frente na instituição, na comunidade, em nosso bairro implica pensarmos e nos posicionarmos frente às diferentes questões que envolve a adolescência daqui e de outros lugares ( do Brasil e ousaria dizer, do mundo; por exemplo, o aliciamento de crianças na guerra) e exige, também, que nos posicionemos frente ao mundo que produz muitos modos de ser adolescente inclusive este com prática de ato infracional. E, no caso do adolescente autor de ato infracional é importante considerar os dados da história. (.Franco da Rocha é um simulacro de Mogi Mirim, a unidade de tortura do sistema febem incendiada pelos adolescentes na década de 70 e um “aperfeiçoamento” do antigo RPM onde os policais militares davam água pros meninos duas vêzes por dia). Por que lembrar isto? Porque a história pode nos ajudar a compreender como se engendra e se mantem esta situação que deixa uma parcela de nossa adolescência - vítima e ator no cenário da violência - em condição de alta vulnerabilidade que se revela, de modo dramático e radical, na morte de colegas e de funcionário.
Este modo de ver o tema exige elencar aspectos que considero relevantes para a abordagem do adolescente no atendimento direto:
- o mal estar na atualidade. O historiador inglês Eric Hobsbawm afirma que o século XX é o século mais violento da história da humanidade. Segundo ele, neste século “ o homem aprendeu que é possível aprender a viver nas condições as mais intoleráveis e desumanizadoras”. Para compreender a crescente brutalidade e desumanidade das relações entre os homens no século XX, é necessário considerar os efeitos da guerra na conduta humana “ a guerra legitima a liberação do potencial de crueldade presente em todo ser humano”. Esta foi a resposta que Freud deu à Einstein que lhe perguntou: “porque a guerra?”
- a violência em suas diferentes expressões. Não só o crime. A violência na relação do homem com o mundo ( as coisas e os outros homens) e com ele mesmo. A violência da guerra que trata a morte de mulheres e crianças como “efeitos colaterais”; que não respeita os tratados multilaterais (as leis da guerra); a tortura científica nas gaiolas de Guantanamo; a espuma tóxica que transborda do rio e invade a cidade; o incêndio do índio; o toque de recolher no bairro sinalizando o enfrentamento com o estado etc. A violência como modo de operar da sociedade tem se tornado ingrediente permanente da cultura: cria um ambiente de sociabilidade e vai se tornando invisível para os que ali nascem, crescem e se desenvolvem; e, é neste clima cultural que formamos as novas gerações – de todas as classes sociais. Jurandir F.Costa diz “o que choca no Brasil não é tanto a truculência das agressões noticiadas, mas a impotência com que aprendemos a reagir a ela.
- a desigualdade social. Entre povos, nações e entre estratos sociais da população de um mesmo país; segundo Hobsbawm, o Brasil é campeão da desigualdade social. O autor chama a atenção para refletirmos sobre os efeitos de os indivíduos de um mesmo país, terem a priori – pela origem de classe - os horizontes de seu futuro definidos: não poderem construir seu próprio destino. E, no caso do adolescente/jovem não poderem consumir aquilo que está diante dos olhos e longe das posses. Eles não se conformam com isto.
- a sociedade do narcisismo. É uma sociedade permissiva onde predomina o eu, a vontade e o desejo pessoal e onde as crianças e os adolescentes aprendem a ver toda autoridade, toda tradição, toda renúncia à satisfação imediata dos desejos e vontades como sinal de autoritarismo e repressão. Na sociedade narcísica, os interesses pessoais prevalecem sobre o interesse coletivo. Qual a ética desta sociedade do “um”? A crise ética da humanidade que não começou agora, tem raízes históricas mas se revela hoje, no esgarçamento de valores agregadores da sociedade ( Helio Pellegrino): dignidade, justiça e solidariedade. Aqueles que hoje fazem uma crítica radical à sociedade contemporânea e manifestam um compromisso com o homem como razão última de todo ato social propõem o estabelecimento de uma ética para o homem como cidadão do mundo, da terra.
- o consumismo. Ter para ser. Os ícones – universais, regionais – do consumo conferem uma identidade de filiação. Na sociedade narcísica, os consumidores – particularmente os adolescentes – são vorazes e, sempre insatisfeitos. Hippnotizados pelo consumo só se deixam mobilizar por aquilo que reverte imediatamente em bem estar físico, mental, sexual.
- a família – esta instituição em profundas e radicais mudanças onde se observa a independência de todos os seus membros, inclusive a crescente autonomia das crianças. Em algumas famílias o limite entre gerações é tênue: os pais se adolescentizam ( os padrões de consumo e de comportamento do adolescente se tornam referências para os adultos: vestuário, música, comportamento sexual) e as crianças e adolescentes se adultizam precocemente: a erotização da infância, o adolescente como unidade de consumo. A família perde a autoridade sobre os filhos.Jurandir F. Costa afirma que a família – refúgio de um mundo sem compaixão – está delegando, se expropriando aos poucos e definitivamente de sua competência de educar ( formar) os filhos para outras agências socializadoras e/ou para outras agências de prestação de serviços, nas quais se destacam os técnicos em relações humanas e saúde mental.
- a revolução da juventude. Novos padrões de conduta. O adolescente, jovem como agente social autônomo e tratado como tal pelo mercado de consumo. A revolução moral: o mais enigmático fenômeno do século XX ( E. Hobsbawm). O adolescente não está arraigado a nenhum valor da tradição e ainda não conhecemos o efeito disto mas já a vivemos.
E, na abordagem mais próxima dos adolescentes autores de ato infracional podemos sinalizar:
- o binômio adolescência – violência. A adolescência desde que se constituiu em objeto de estudo
( século XIX) foi pelo enfoque do problema. A mentalidade prevalente se revela em campanhas como por exemplo, da redução da idade penal. - a escalada do crime organizado com a cooptação de jovens cada vez mais jovens para o crime organizado. Angelina Peralva em seu livro “Democracia e Violência” diz da juvenilização do crime não como uma opção ética mas como garantia de vida.
- a ausência de diferenças significativas ( hábitos, interesses, escolaridade etc) entre os adolescentes autores de ato infracional e os demais adolescentes de sua própria classe social. As diferenças entre classes são mais importantes ( NEV/USP).
- o mito da escolarização para erradicar a criminalidade. Aqui e em muitos países do mundo, na França por exemplo, constata-se o aumento do nível de escolaridade dos adolescentes envolvidos com o crime. Isto leva a duas hipóteses: a universalização da educação e\ou a entrada de outros estratos sociais na prática do ato infracional. O que muda é o tipo de delito.
- A ausência de perspectiva de futuro. O jovem do Jardim Angela (São Pauo) comemora ter chegado aos 25 anos. A questão da “opção” pela criminalidade não é necessáriamente ética, como ensina Peralva, mas está relacionada com o risco real de morte caso o adolescente não se defina pela participação na quadrilha, gangue etc. Em Cidade Tiradentes (São Paulo), os lugares considerados mais perigosos são aqueles em que há disputa quanto ao domínio do território.
A isto se acresce:
- esta é a área em que as avaliações sobre a implementação do ECA demonstram que houve menos avanços; a pesquisa do Depto da Criança e do Adolescente do Ministério da Justiça em 1998 apontava São Paulo como um dos 3 estados brasileiros com as condições mais precárias de atendimento; o Mapeamaento Nacional realizado no final de 2002, reafirma a precariedade do atendimento, a dificuldade de implementação da lei e, no caso de São Paulo se revela no regime carcerário instalado. A instituição destinada ao cumprimento da medida socioeducativa de privação de liberdade em São Paulo mostra-se, segundo dossiês nacionais e internacionais, produzindo adolescentes cada vez mais cruéis/violentos por suas práticas de tortura. O Estado é transgressor de suas responsabilidades, no caso com adolescentes cuja questão, em suas vidas, é a transgressão às leis. É necessário saber o que acontece na instituição destinada ao cumprimento da medida de privação de liberdade porque muitos adolescentes em Liberdade Assistida passam pela instituição.
- as resistências dos serviços e programas ao atendimento do adolescente autor de ato infracional e, portanto, a dificuldade em compor a rede de parcerias e serviços;
- o atendimento nos programas; sua precariedade porque não há recursos, não há rede, não há competência, não há futuro;
Portanto, se evitamos os riscos de:
- abordagem psicologizante – um reducionismo que leva à compreensão e encaminhamentos equivocados porque coloca exclusivamente no adolescente as determinações de sua conduta.
- culpabilização da família – a família está inscrita na mesma base material da sociedade. Aqui um cuidado dobrado: existe uma tendência à abordagem moralizadora e ideológica da família que se revela, por exemplo, no uso do conceito da família desestruturada quando a família não obedece o padrão típico de família nuclear ( pai, mãe e prole). Hoje, com as transformações nos padrões de convivência existem inúmeras possibilidades de estrutura e organização familiar - a família mono parental, a família homossexual, a família composta por filhos de ambos os conjuges de casamentos anteriores – e o que importa é se ela cumpre as funções parentais de cuidado, proteção e segurança dos filhos o que garante o desenvolvimento saudável.
- abordagem economicista – reduz à pobreza os determinantes do envolvimento com a criminalidade ( criminalização da pobreza)
Podemos pensar alguns parametros para o atendimento:
- o ECA como referência: o adolescente como sujeito de direitos e a sua importância, para o adolescente, que ele seja responsabilizado pelas suas ações. Ele tem capacidade de discernimento.
- a importância de conhecer a realidade na qual o adolesente vive ( não só a família) para compreendê-lo e auxiliá-lo.
- compreender cada adolescente como autor de uma biografia única com uma história, um presente e a possibilidade de um destino/futuro absolutamente singular. A pobreza ou o delito não os homogeneiza.
- construir com o jovem um plano para o presente e para o futuo. Pensar no futuro sem considerar o presente que viabiliza o futuro é, muitas vezes, “trabalho jogado fora”. Pensar o presente significa ocupar-se, junto com o adolescente, de “coisas” prosaicas como: onde ele vai dormir? Ele come? Tem dinheiro para a condução para procurar emprego ou vir até o Projeto? São as “coisas”insignificantes do cotidiano que constituem a vida de todos nós.
- Fazer contratos claros e viáveis com responsabilidades recíprocas.
- Evitar uma leitura mecaniscista dasw exigências de LA: escola e trabalho. Até porque para o adolescente de classe média não colocamos a questão do trabalho em pauta. Considerar que, hoje, a educação se processa por inúmeras agências e processos além da escolarização formal.
- Introduzir o adolescente, estimulá-lo a participar de uma rede de relações – associações, grupos, entidades, clubes etc – no sentido de situá-lo na comunidade em uma inserção que modifique ou amplie suas experiências anteriores. Isto significa principalmente duas coisas: o programa tem que superar a idéia que deverá suprir tudo para o adolescente e, portanto, ceve desenvolver inúmeras atividades e oficinas, internamente; e, deverá ter uma rede de parcerias e serviços – rede pública e particulares, locais e municipais – que inclua aqueles aspectos para além da saúde, educação e trabalho. Os direitos à juventude incluem esporte, lazer, cultura. O que aponta para a questão do protagonismo juvenil naquela vertente que prevalece na América Latina e tem se mostrado eficiente na mobilização dos jovens para pensar o mundo, a si no mundo e outros mundos possíveis.
Finalizando, considero que a compreensão e o enfrentamento do fenômeno do adolescente autor de ato infracional é uma tarefa para muitos ancorada em convicções capazes de sustentar a nossa resistência ao intolerável em busca de outros futuros possíveis para nós e as novas gerações.