A Contribuição da Psicologia para os Operadores do Direito

Autor: 
Sidney Shine,
Autor: 
judiciário, psicanalista e professor do curso “Saúde Mental e Justiça” / Faculdade de Medicina da USP

Pretendo endereçar a vocês o que penso ser a contribuição deste campo de conhecimento (Psicologia) através de um recorte específico (atuação na clínica e na instituição judiciária) aos operadores do direito no exercício de sua profissão. Incluo aí todos que, a partir da formação básica em Direito, ocupam posições diferenciadas no exercício profissional ligado à Justiça: advogados, promotores, juízes e desembargadores. Procurarei discriminar algumas formas de atuação do psicólogo e, em particular, na atuação em Vara da Família. Enfocarei os reflexos no psiquismo dos operadores do direito que entram em contato com os dasos de Vara de Família. Para tal utilizarei a minha própria experiência como psicólogo judiciário, trabalhando há 14 anos em perícia psicológica nas Varas da Família e Sucessões do Fórum Central João Mendes Jr. de São Paulo e como psicoterapeuta individual e de casal e família em outros locais.


O CONTEXTO
Em primeiro lugar, cabe esclarecer que a Psicologia não é um campo homogêneo com uma hierarquia clara e histórica de teorias e técnicas. Como se trata da abordagem do ser humano, a própria concepção do que é este humano varia conforme os princípios e valores daquele que estuda. Ou seja, trata-se de um campo do saber onde o objeto do estudo é outro sujeito (ser humano), portanto a separação sujeito do conhecimento do objeto do conhecimento não é algo estanque. Um exemplo, um tanto chocante, pode ser retirado do livro Perspectivas Radicais em Psicologia. O autor americano, que eu não me recordo o nome, compara o experimento de um pesquisador na área da Química com a atuação do psicólogo. O autor imagina uma situação em laboratório na qual o pesquisador mistura distintos elementos em um tubo de ensaio. Enquanto aguarda a reação química esperada, ele pode se masturbar tranqüilamente que não produzirá nenhuma alteração no fenômeno químico.


Peço desculpas se o exemplo foi um pouco chulo, mas eu o escolhi porque traz à tona aquilo que pode ser considerado uma das áreas mais privadas de nossa experiência pessoal: a sexualidade. Costumamos pensar que áreas privadas da nossa subjetividade estão sãs e salvas em nosso íntimo quando operamos no nosso trabalho diário. Para a grande maioria das profissões isto é a regra e, obviamente, não seria nada adequado expormos nossa intimidade ou permitir que o outro o faça no exercício dos vários intercâmbios sociais.


O mesmo não pode ser dito na minha área de atuação. Quando estou no consultório, a pessoa que me procura quer e precisa dizer das coisas mais íntimas e que lhe causam embaraço, vergonha, aflição e culpa para que eu possa fazer alguma coisa pela pessoa. E o cliente, mesmo sabendo disso e concordando, tem dificuldades de assim proceder. O que eu disser ou fizer também estará influenciando na continuação da nossa interação. Por isso que existem certas normas técnicas de procedimento em entrevistas com a finalidade de facilitar a expressão do sujeito que está na nossa frente contra aquilo que denomino resistências (que são dele próprio). Ao mesmo tempo, procuro me abster de fornecer dados pessoais que seriam normais em outras interações sociais (estado civil, ausência ou não de filhos, preferências quanto ao time de futebol etc.). Esta conduta tem uma finalidade técnica clara de permitir que o outro se exponha com a maior liberdade possível sem que se sinta ainda mais constrangido ou receoso de professar idéias e valores que, porventura, possam ser contrários aos meus.


Aqui cabe também diferenciar o campo de trabalho ao qual me refiro (consultório) comparando com o outro campo ao qual fiz alusão (laboratório de pesquisa). Ou seja, uma coisa é atuar em pesquisa, tomando todos os cuidados técnicos e éticos para não viesar o resultado da mesma, outra coisa é já atuar na clínica (consultório) onde a própria pesquisa do problema (por que esta pessoa sofre?) se imbrica com o propósito de solucioná-la (alívio do sofrimento). É isto que vou denominar de uma ética terapêutica, ou seja, o trabalho clínico busca um fim específico que redunde em benefício mesmo daquele que o procura. É isto exatamente que vai garantir que o cliente aposte em fazer um atendimento comigo e que outros clientes me busquem para o mesmo fim. E a terapêutica pode estar baseada em teorias cujos pressupostos sobre o homem são diferentes. Daí termos as diversas linhas (teorias) tais como Psicanálise, gestalt, psicodrama, abordagem reichiana, junguiana etc. Como explicitei acima, o ponto de vista que adoto e a partir do qual vou tecer as minhas considerações sobre o efeito do trabalho sobre os operadores do Direito é da teoria psicanalítica.


A VERDADE ESTÁ NO ÍNTIMO: O IMAGINÁRIO SOCIAL E O PSICANALISTA
Uma idéia generalizada no meio social é que o psicólogo sempre está analisando o outro. É comum ouvir algum comentário do tipo, nos momentos mais fortuitos de interação social, numa festa, por exemplo: "Ah! Você é psicólogo? Psicanalista? Então, vou tomar cuidado com o que falo!" He, he, he... (sorrisos amarelos). Costumo dizer que a pessoa não precisa se preocupar, pois só analiso mediante os meus honorários. E lá se vai mais um par de sorrisos amarelos (he, he, he).


A idéia que eu gostaria de ressaltar desta piada doméstica é de que não é prerrogativa do psicanalista analisar (daqui para frente eu usarei indistintamente o termo psicólogo e psicanalista ). Veja, segundo a interpretação do meu interlocutor na estória que lhes contei está, primeiro, a idéia de que “psicólogo analisa” e que “possui instrumental que o habilita para tanto”. Portanto, a idéia de base é que nós teremos acesso ao âmago do outro, à verdade subjetiva e íntima do outro.


De certa forma, a demanda da instituição Direito para a Psicologia sempre foi neste sentido: fornecer instrumental para descobrir a Verdade. SIGMUND FREUD, o criador da Psicanálise, vai abordar exatamente esta questão para uma platéia, na faculdade de Direito de Viena, explicando como o método psicanalítico se diferencia de um instrumento “detector de mentiras”. Este interesse dos agentes do Direito em utilizar a Psicanálise para a pesquisa da verdade datava já de 1906. FREUD é bastante cuidadoso e crítico quanto à aplicação da teoria psicanalítica para a prática judiciária. Ele alerta, por exemplo, que o psicanalista trabalha contando com a aliança terapêutica do paciente (ele quer se tratar e colabora ativamente com o analista) e luta contra suas resistências inconscientes, enquanto que o operador do direito busca uma verdade que pode estar sendo omitida conscientemente pelo sujeito, possível criminoso. As técnicas e conclusões de um campo não podem ser transpostas a outro, ignorando-se as diferenças de motivação (colaboração X oposição), natureza do trabalho (terapêutico X policial), natureza da verdade (inconsciente X consciente) e da resistência em jogo (inconsciente X consciente).


Esta advertência não invalida a possibilidade de se buscar ferramentas no campo da Psicanálise para instruir um processo judicial. É este campo que recebe o nome de Psicologia Forense ou Jurídica, na qual dentro de uma especificidade na área do direito de Família existe a perícia psicológica. O objetivo da perícia psicológica é exatamente trazer ao magistrado subsídios da área da Psicologia no que diz respeito à dinâmica familiar, efeitos sobre a(s) criança(s) de fatos específicos (separação dos pais, abuso sexual etc.) e aferição de habilidades e capacidades dos adultos (maternagem e paternagem). Percebam que este subsídio vem no sentido de suprir um conhecimento específico que está fora da competência original do operador do direito em questão (juiz). Uma vez apresentado o laudo psicológico nos autos como o resultado de tal avaliação, tal laudo constituir-se-á em mais uma das provas (técnica, no caso) que o julgador apreciará para formação de sua convicção.


Esta é a primeira contribuição específica e direta da Psicologia aos operadores do Direito em Vara de Família: uma atuação a partir de dentro do processo judicial enquanto perito. É claro que existe uma contribuição maior dentro da qual esta participação específica se coloca que é o corpo de conhecimento da área da Psicologia que vai se formando através de pesquisas e atividades na área. Cito a contribuição do próprio FREUD que em 1916 escreveu sobre um tipo de caráter que está ligado à Psicologia do crime e, portanto ao Direito Penal. É nesta área que encontramos um grande número de trabalhos de outros psicanalistas seja na linha de estudo de caso quanto na aplicação do método psicanalítico como forma de tratamento de certos desvios de personalidade que caem na realização de atos anti-sociais, em especial o quadro conhecido como psicopatia ou dentro da terminologia psiquiátrica atual "transtorno de personalidade anti-social".


Mas se nos voltamos à área de Família podemos citar, por exemplo, toda a ênfase que se deu no início do desenvolvimento do bebê ao seu relacionamento com a mãe, como figura primordial de cuidados que contribuiu para a doutrina que os americanos chamam de “tender year”. Ou seja, que crianças muito pequenas devem permanecer com a mãe em função da importância desta figura para o saudável desenvolvimento da criança nos primeiros meses de vida. Ora, um pesquisador como DERDEYN vai mostrar que no início do século não se colocava de maneira nenhuma esta pressuposição. O Direito no mundo ocidental, fortemente influenciando pela lei romana, dava controle absoluto ao pai sobre os seus filhos, a quem ele podia vender ou condenar à morte quase que impunemente. Esta concepção vai vigorar, quase sem alteração sobre a lei inglesa até o século XIV. Nos Estados Unidos, cujas decisões sobre guarda de filhos refletiam a tendência da lei inglesa, o pai tinha precedência na guarda baseado em sua competência financeira em prover as necessidades dos filhos durante o século XIX. Não podemos desconsiderar que o julgamento vai refletir os valores e códigos vigentes de uma determinada sociedade em um determinado tempo e lugar. E neste sentido, o que é verdadeiro hoje pode não o ser amanhã.


Mas existiriam outras formas de participação direta do psicólogo na lide de Família? Sim. A psicóloga carioca LEILA TORRACA DE BRITTO em seu livro de Separando – Um estudo sobre a atuação dos psicólogos nas Varas de Família relata o caso de um escritório de advocacia que utilizava os serviços de um psicólogo para realizar entrevistas com o cliente que vinha solicitar representação legal. Era a partir da avaliação que este profissional fazia sobre a pertinência psicológica do caso que o escritório aceitava ou não o caso. Parece ser um caso único, desconheço qualquer outro escritório de advocacia que tenha este tipo de cuidado com os aspectos psicológicos em jogo.


Eu definiria a atuação do profissional acima descrito como o de um consultor. Alguém especializado em uma área que é ouvido a fim de subsidiar uma ação específica mais qualificada na área do Direito. Esta incursão no judiciário também pode ocorrer quando alguém reconhecidamente especializado em determinado assunto pode ser chamado para dar um parecer. Penso que dentro da área de vocês se chama a figura do parecerista que me parece igual ao do consultor, talvez a diferença esteja no fato de que aquele não tem uma interação direta com partes ou com a especifidade do caso fazendo uma análise documental. FREUD (1930) também desempenhou tal papel em suas raras incursões nas questões judiciais. Ele foi chamado em um caso de assassinato a examinar o laudo realizado com o réu. FREUD chamou atenção quanto ao cuidado necessário à aplicação da teoria psicanalítica nos problemas jurídicos. FREUD critica o uso ingênuo da Psicanálise para explicar, a posteriori, o fenômeno do crime. Ele associa este viés a uma estória que ele conta na referida palestra a advogados em Viena (1916): "Houve um arrombamento e um homem foi detido por ter consigo um pé-de-cabra. No julgamento, onde foi lhe imputada a culpa, o juiz pergunta se ele teria algo a declarar antes de ouvir a sentença. O homem se levanta e pede que também seja condenado por estupro, pois igualmente possuía o instrumento apropriado para tal crime".


Uma outra figura, mais comum em casos de família é a do assistente técnico, um profissional psicólogo (mas que poderia ser de qualquer outra área de atuação na qual se configure uma perícia) contratado pela parte para assisti-lo. Sua função seria acompanhar o trabalho pericial garantindo uma boa conduta técnica e ética do perito. Na prática, no entanto, tem se transformado num profissional que defende o seu cliente utilizando-se de argumentos psicológicos. Muitas vezes antagonizando com o perito quando este é contrário à sua parte. Portanto, o trabalho técnico vem fazer parte da própria estratégia judiciária do advogado na defesa. A lógica que embasa a prerrogativa das partes em contratar assistentes técnicos é a da plena defesa que cabe no contraditório da ação. Da mesma forma que o magistrado supre uma carência de informação técnica através de seu perito, o advogado se “municia” da informação de seu assistente técnico para melhor advogar para a sua parte.


Retomando, as possibilidades de subsídio da Psicologia ao Direito de Família seriam de quatro naturezas: a primeira, mais geral, através do seu corpo de conhecimento, fornecendo melhores condições de apreciar o estágio de desenvolvimento psicossocial da criança, a natureza dos seus relacionamentos com os pais e quaisquer problemas psicológicos ou emocionais importantes da criança ou dos pais; a segunda, através da consulta pelo advogado do profissional especializado para que ele aprecie no caso específico as questões pertinentes de sua área, dando condições do advogado perceber melhor a dinâmica do caso que defende ou até mesmo utilizar tal conhecimento para abrir mão de um caso; a terceira, utilizada pelo poder público (Tribunal de Justiça) que através de concurso específico criou o cargo de psicólogo judiciário, chamando-o para atuar como perito em casos específicos determinados pelo magistrado (cumpre lembrar que a figura do psicólogo que não faz parte do quadro do Tribunal e de confiança do juízo, que atua mediante pagamento das partes, não está extinta); e a quarta atuação possível, complementar e paralela ao do perito, seria através da figura do assistente técnico, profissional parcial e de confiança da parte, contratado por este para melhor subsidiá-lo ou ao seu advogado no enfrentamento da prova pericial.


EXPLICANDO ALGUMAS DIFERENÇAS
Até aqui abordei as formas de atuação do psicólogo que tenham estreita relação com os operadores do direito. Penso que seria importante qualquer advogado que milite nesta área tomar conhecimento destas possibilidades para poder lançar mão delas em seu trabalho. Até para contactar o profissional competente é necessário um mínimo de conhecimento geral da área de atuação do outro profissional. Na minha atuação vejo que é muito comum, por exemplo, os advogados e até mesmo juízes confundirem a área de atuação do psicólogo e do assistente social.


Muitas vezes quesitos são apresentados para um tendo em vista a área do outro e vice-versa. Uma forma didática de distingüir tal diferença é pensar que o assistente social, como o próprio nome já indica, estará preocupado em levantar o em-torno (o social), ou seja, as condições físicas de moradia e sustento dos pais e seu círculo social no que concerne aos valores e códigos de conduta (moral).


O psicólogo se debruçará sobre os aspectos do mundo interno, ou seja, qual é ou quais são as imagens que os pais têm da(s) criança(s) e vice-versa, como estas imagens são influenciadas por conflitos emocionais e de que naturezas são tais emoções (medo, ódio, amor, culpa etc.). Pretende-se a partir do mundo interno individual, pensar naquilo que se chama dinâmica familiar, ou seja, dado que as pessoas são assim e vivenciam assim as outras pessoas de seu grupo quais as características básicas dos relacionamentos que se constroem a partir disto (existe competição, colaboração, alianças, segredos, conluios etc.). Bem como avaliar as características desenvolvimentais da(s) criança(s) bem como as habilidades dos pais (maternagem e paternagem). Penso que fazer a distinção destes dois campos permite ao profissional do direito interrogar de forma mais pertinente o profissional para obter o subsídio de que precisa.


Um outro erro que advogados podem cometer é confundir técnica e objetivo da técnica de um psicólogo. Como já mencionei anteriormente, o trabalho básico do psicólogo é analisar. Pois bem, penso que ao demandar um trabalho ao psicólogo possa-se especificar o que, exatamente, gostar-se-ia que se analisasse. Estabelecendo o que, penso que se deveria deixar ao critério do profissional o como ele fará para chegar a tal objetivo. Eu já vi, inúmeras vezes, petições de advogados solicitando, em vez de uma análise do perfil psicológico de fulano, que se aplique o Teste de Rorschach em fulano.


Ou que, para discriminar se há influência dos adultos sobre o que pensa(m) a(s) criança(s), solicita-se que se façam entrevistas individuais com o(s) menor(es) e não na presença do adulto. Penso que um profissional de outra área, por mais bem informado que esteja, não tem competência e nem a legitimidade de escolher a técnica que o profissional competente deveria usar para se atingir tal e tal objetivo. Sinto-me entre incomodado e embaraçado quando tal situação ocorre comigo. E sempre procuro informar da maneira mais discreta possível que o pedido está formulado de maneira equivocada.


E pensando um pouco sobre a psicopatologia do trabalho em Vara de Família. Será que o contato diário com casos de pais em litígio, com questões de guarda e visita de filhos, com ameaças de prisão por falta de pagamento de pensão alimentícia etc. não impõe certo ônus sobre os profissionais do direito? De que forma os operadores do direito poderiam ser afetados a partir do contato contínuo com esta clientela, com tais problemas de ordem familiar? De que forma os advogados, juízes e promotores são preparados para enfrentar o stress e o ônus psíquico de lidar com tais casos?


Em primeiro lugar, esclareço que desconheço trabalhos sistemáticos nesta área, mais ligado à Medicina do Trabalho ou Psicologia do Trabalho. O que vou lhes trazer hoje parte da minha experiência e de minhas observações a partir da minha atuação como psicólogo judiciário e do que observo nos juízes, promotores e advogados com quem tenho contato. Peço licença, então, para me reportar às minhas experiências sem grandes pretensões de generalização.


Vou lhes contar um caso que me foi relatado por uma amiga advogada desempenhando sua função em um Serviço de Assistência Judiciária.


O cliente veio ao serviço de assistência em busca de orientação sobre cálculos trabalhistas.Entrou na sala e antes de se sentar ou dizer qualquer coisa educada disse que estava ali muito contrariado, que sempre tinha problemas com os advogados, "essa raça", “mentirosos que sempre levavam seu dinheiro e nunca resolviam o problema”. Pedi então que ele se sentasse, expliquei como funcionava o serviço e disse que teríamos que preencher uma ficha (geralmente deixo o cliente falar e depois anoto os dados e histórico do caso, mas com esse achei que seria importante pará-lo).Ele estava muito impaciente e não parava de falar, me lembrei que não tinha dito meu nome e me apresentei no meio de uma fala.Bem, ai aconteceu a mágica.O homem se calou, abriu um sorriso imenso, prestou atenção em tudo que eu disse dali por diante, até que expliquei a ele que não poderíamos fazer a ação pelo fato dele ter renda maior que três salários mínimos.O homem ficou desesperado, disse que se não fosse eu não daria certo, afinal eu tinha o mesmo nome de sua primeira esposa, com quem ele tinha sido muito feliz e que aquilo era um sinal dado por ela e sendo assim eu não poderia fazer aquilo com ele.Expliquei de novo a situação, mas reiterei que não poderia ajudá-lo no tocante a ação além das informações que já tinha dado a ele.O cliente foi embora muito bravo, mas dois dias depois, pra minha surpresa retornou ao serviço querendo falar comigo.Atendi e ele veio de novo com a conversa de que era um sinal, que a ex-mulher sempre cuidou dele e etc...Percebi que seria inevitável repetir o que já tinha dito, ele realmente acreditava que era um sinal e, então, embora fosse contra as regras do estágio, indiquei a ele um advogado particular conhecido meu. Ele então saiu muito satisfeito e meu amigo me contou que ele chegou ao escritório emocionado, contando toda aquela história da mulher, do sinal e pasme falando bem de advogados!


Eu gostaria de chamar a atenção para o fato, em primeiro lugar, de que não se trata de um caso de Direito de Família (é um caso trabalhista), mas este atendimento ilustra muito bem as questões que estão presentes nos casos de Família. Gostaria de lhes relembrar o que disse, logo no início da minha exposição, sobre as questões íntimas de cada um. Vejam que neste exemplo, a minha amiga disse somente seu nome (algo de maneira nenhuma da alçada da esfera íntima) que teve um efeito “mágico” de detonar toda uma explicação mítico-religiosa que dava um novo sentido àquela interação profissional. É óbvio que ninguém está a salvo de encontrar sujeitos “loucos” pela frente (e em algumas profissões o risco só aumenta), mas a questão não é essa. Na vida, encontramos um número enorme de pessoas. Existem aquelas das quais nos aproximamos, sentimos empatia e simpatia, outras não.


O fato de sentirmos positivamente ou negativamente em relação a alguém é explicado pela Psicanálise.


Acreditamos que exista um processo psíquico em que estamos constantemente revivendo aspectos passados e significativos de nossos relacionamentos nos e através dos relacionamentos atuais. Por isso as escolhas afetivas que fazemos estão permeadas pela nossa necessidade de revivermos certas emoções, sejam prazerosas ou não. A este processo a Psicanálise chama de transferência que pode ser de duas naturezas, positiva ou negativa. Foi através desta “ferramenta de trabalho” que FREUD desenvolveu a técnica terapêutica da Psicanálise, modalidade na qual o profissional exerce sua influência sobre o psíquico do seu cliente e vice-versa.


No exemplo acima, o sujeito chegar já amaldiçoando os advogados: é uma amostra da transferência negativa. O sujeito nem bem conhece a pessoa à sua frente, mas baseado em sabe se lá qual experiência negativa ou até mesmo, um receio ou fantasia, ele já se coloca na defensiva. Se havia pouco fundamento para tal atitude, poder-se-ia dizer o mesmo da atitude contrária. O fato de a advogada ter o mesmo nome que sua falecida esposa não quer dizer, do ponto de vista profissional, absolutamente nada. Mas a “mágica” está feita, quase sem querer. Acredito que todos tenham exemplos pessoais de algo parecido. Quem já não viveu uma situação na qual uma coincidência fortuita não trouxe uma boa ou, então, uma má impressão? Quem não se apaixonou por um nome, um corpo, um jeito sem sequer saber mais sobre a pessoa a quem pertence tal atributo? O que a Psicanálise nos ensina é que forças afetivas poderosas estão em jogo em todas as interações humanas. Mas o que a situação do advogado que assume um caso de Família teria em particular?


Penso que o advogado de Família é chamado a atuar em um momento muito especial da família, principalmente nos casos de separação e questões envolvendo filhos. É sabidamente um momento de crise, de transição, onde há muita confusão e emoção à flor da pele. O advogado vai receber o impacto de um pedido de ajuda com toda a carga emocional atrelada a ela. Entrar em contato com um ser humano carregado de emoções e angústia pode ser uma experiência muito difícil e estressante.


Estou me lembrando de uma mulher que me solicitou uma entrevista e começou a chorar no telefone, sem ao menos me dar uma chance de marcar um horário para conversarmos devidamente. É importante o advogado (ou advogada) saber que, muitas vezes, será depositário de muitas expectativas e esperanças que podem assustá-lo(a) pela enormidade daquilo que se quer. Penso que há uma analogia possível com a minha situação de receber clientes em consultório quando a demanda de ajuda pode ser simplesmente “me transforme em uma pessoa completamente diferente”. Aí é necessário preparo para acolher tal cliente e prestar informações claras e precisas sobre as possibilidades reais de tais demandas frente à realidade. Nesta hora é preciso suportar estar sendo colocado no lugar de “salvador da pátria”, “justiceiro” etc. e dosar esclarecimento e continência.


Como os casos de Família mexem com conflitos e emoções de alto grau de intensidade e mobilização (amor, ódio, tristeza para citar os mais comuns) é preciso também estar preparado para ser “mexido” internamente. Ou seja, nunca ouvimos problemas familiares impunemente, sempre algum conteúdo vai nos atingir em relação aos nossos entes queridos. Lembro-me de um assistente social, já aposentado do Forum João Mendes que me alertou: “Cuidado com estes casos. Se você ficar trabalhando muito aqui, você não vai querer se casar”. Era uma brincadeira, mas como em toda brincadeira, havia um lado verdadeiro neste aviso.


A idéia de que pode haver algum tipo de “contaminação” é mais comum do que se imagina. Uma psicanalista americana chamada JUDITH WALLERSTEIN (1990) comenta este fenômeno através das palavras de uma outra psicanalista sob sua supervisão, sobre o impacto de trabalhar com casais em divórcio. “Aqui estão duas pessoas que em algum momento se amavam, tocavam-se um ao outro, acariciavam-se, tinham relações sexuais e, tudo isto transformou-se agora em ódio do outro. Isto me dá uma certa desesperança em acreditar que possa haver algum amor duradouro no mundo, algo com que se possa contar, alguma confiança nos relacionamentos humanos.”


WALLERSTEIN me fez pensar sobre a ansiedade que tenho que conter em mim quando trabalho com casais em alto grau de conflito. Foi de certa maneira reassegurador encontrar uma outra profissional que era capaz de veicular pensamentos que já reconheci em mim, que revelavam o medo do “contágio” do outro. Pensamentos tais como: “Puxa, fico contente que não sou casado, portanto eu não tenho que me preocupar. Não estou nem namorando agora!” Ou exatamente o contrário, “Eu me sinto muito mais seguro do meu próprio casamento depois que comecei a trabalhar aqui”. O que tanto um quanto o outro pensamento revelam é o medo de ficar igual a quem se atende, de perder o distanciamento necessário para trabalhar – são formas de se defender da idéia: “Será que é contagioso? Será que algo assim pode acontecer comigo?” É o que a Psicanálise chama de identificação. Ou seja, pela proximidade e pela força da comunicação afetiva algo acontece que me transformo no outro. Para que isto não aconteça, eu reafirmo a minha diferença através do meu estado civil ou do estado do meu casamento, etc. Mas o que é importante, é isto que quero enfatizar, é a percepção do próprio medo e da angústia na interação com o cliente. Sentimentos que terão que ser “suportados” em função da tarefa que nos cabe. Vou lhes trazer um exemplo disto.


Certa vez, atendendo a um senhor separado de seus trinta e poucos anos, e brigando para ver a filha de oito anos, ouvi ataques verbais terríveis dirigidos à sua ex-mulher. Nem me lembro mais do teor das críticas, mas me impressionou a força e a virulência de seu ódio àquela que antes tinha sido seu objeto de amor e com quem teve uma filha linda. Saí da entrevista e, sem me dar conta, liguei para minha esposa, sem ter um motivo aparente. Quando desliguei, eu me dei conta que o meu ato tinha sido uma reação em resposta ao ataque que este homem fizera. Eu simplesmente tive que me certificar que o meu objeto de amor ainda estava intacto!


Poder-se-ia pensar ainda na identificação que sentimos em relação às crianças que se encontram no meio de uma disputa entre os pais. Não corremos o risco de nos sentirmos mais atingido quando tais crianças nos lembram as nossas próprias? A lógica é a mesma. O estresse e a falta de uma postura mais neutra e profissional ocorrem quando não há um distanciamento psicológico suficiente entre mim e aquele a quem atendo. Quando de certa maneira, o outro me envolve e me faz representar alguém ou algo de sua própria experiência passada, aquilo ao qual denominei de transferência. Voltemos ao exemplo de minha cara amiga advogada, a quem sou grato pela permissão de usar este exemplo e com quem tenho aprendido coisas muito interessantes.


Vocês se lembram que aquele cliente em potencial se vinculou à minha amiga pela coincidência do nome de sua falecida esposa. A sua crença é que “aquilo era um sinal”, portanto somente ela, MÁRCIA, poderia ser a resposta para a sua necessidade. A falecida esposa estava provendo-o do além, assim como deve ter feito quando ainda em vida. Uma vez estabelecida a transferência, não podemos ignorá-la. O psicanalista RENATO MEZAN faz uma comparação com uma passagem em FREUD que compara a mobilização da transferência com a evocação de espíritos das profundezas. MEZAN nos lembra que uma vez que eles aparecem, não podemos simplesmente mandá-los de volta! Então, minha amiga também não conseguiu mandar seu cliente embora. Mas vejam a solução interessante que ocorreu: frente ao impasse (não poder atendê-lo diretamente em função das normas do serviço), ela “deu um jeitinho” e fez um encaminhamento direto a um colega conhecido. E parece que isto resolveu o problema. Agora, chamo a atenção de vocês para o fato de que, ao fazer este movimento, de enviá-lo a um endereço certo, MÁRCIA “agiu” como a falecida MÁRCIA. Ela (minha amiga) fez exatamente aquilo que este senhor esperaria de MÁRCIA (sua falecida), que ela “desse o sinal e lhe achasse um advogado”. Não é interessante? Eu diria que MÁRCIA agiu transferencialmente respondendo a um pedido não explícito deste senhor.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BRITO, L.T. Separando – Um estudo sobre a atuação do psicólogo nas Varas de Família. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993.

DERDEYN, A.P. “Child custody contests in historical perspective”. In: Am. J. Orthopsychiatry, 133:12, Dec. 1976.

FREUD, S. “A Psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos”(1906). In: FREUD, S., Edição Eletrônica Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol. IX.

FREUD, S. “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico” (1916). In FREUD, S., Edição Eletrônica Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol. IX.

FREUD, S. “O parecer do perito no caso Halsmann (1931[1930]). In: FREUD, S., Edição Eletrônica Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol. IX. SHINE, S.K. Psicopatia. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2000.

WALLERSTEIN, J. “Transference and coutertransference in clinical intervention with divorcing families” In: Am. J. Orthopsychiatry, 60(3), July 1990.

São Paulo, 18 de março de 2002.



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